O sorriso. O sorriso. Sempre o sorriso.






Ontem foi dia de digestão difícil. Não consegui falar e menos ainda escrever. Chegou o momento da quase catarse.






Mensagem escrita e demasiado curta do meu pai “morreu o D. António”. Resposta parva e demasiado impulsiva minha “estás a brincar.” Não, ninguém brinca com o fim da vida e há de ser outra pessoa que não esta.

Não vou ver nem falar mais com o Dr. António (não é erro, perdoem-me os formais do tratamento. Era D. António, Bispo do Porto. Nesta casa que hoje escreve, foi sempre o Dr. António). Não vou mais bater-lhe à porta, nem conversar sobre o que podíamos fazer ou ter feito. Não vou enviar mais mensagens fora de horas nem ouvir o seu “Ó Ana”, que, quem conhecia a sua voz sabia ser este Ó inconfundível.

Da última vez, há uns tempos, aparecemos sem avisar antes. Estávamos a passar perto do Paço, “vamos dar um beijinho ao Dr. António?” e fomos. “- Pediu que, se o procurassem, dissesse que estava ocupado pois está com muito trabalho mas quer vê-los, sim.” Subimos. Sei que diria o mesmo a qualquer um que o procurasse naquele momento. E que estava mesmo com muito trabalho, confessou-nos. Cansado. Sorridente. Amoroso.

“Ó Maria! Anda ao meu colo. És a cara da tua mãe quando também andei com ela ao colo.” Sorridente. Amoroso. Não importam aqui as parecenças. Importam os 36 anos de amizade, carinho, estima e crescimento (meu). Viu-me de pequena. Vi-o sempre grande.

Desabafamos os dois. Coisas nossas que vinham de longe e outras acabadas de chegar. Falou. Ouviu-nos. Olhava a Maria e brincava. Sorridente. Carinhoso. “- Não queremos tirar-lhe mais tempo.” “- Isso é que não. Vejo-te tão pouco. Ó Ana...”. Cruzamos, ali, a saudade de outras vidas e outros tempos e projetos e pessoas e sonhos. “- O teu pai? E o teu irmão? Os teus tios? A tua avó?”

“Anda, Maria, que tenho ali uma sala toda para ti.” Uma imensa sala em vermelho e um imenso tapete em vermelho também, ao abrir a porta. “Esta sala é para tu vires correr, Maria. Aqui tens muito espaço.” A Sala do Trono do Paço Episcopal. Dali, janelas gigantes para o Douro. Outras, onde estivemos a conversar, para ruas com nada de dourado. A zona da Sé, a Rua Escura e, ali, muito do mau que o Porto tem. “Fizemos isto e aquilo e agora vamos fazer mais isto e mais aquilo.” Não interessa o que fez. Sabemos que fez. Falámos dos sem-abrigo da cidade e da saudade que tenho deles. Disse-me que iria dar-lhes conta disso, mandar-lhes o meu abraço.

Recordamos coisas tontas. Como quando tínhamos reuniões ao sábado de manhã e eu, cansada e incapaz de controlar o sono, fechava os olhos de vez em quando. No final, com o também querido Monsenhor Russo, “ Vai lá dormir e tratas disto depois.” Uns anos depois, íamos almoçar com mais dois queridos amigos e rimos muito: “Ó Ana, e quando tu adormecias nas reuniões?”
  
Recordamos coisas boas e pessoas melhores. De como éramos uma pequena família numa casa em frente a minha casa. De como se constrói do zero uma escola com valor e de como são as pessoas que fazem as instituições. “- Nunca mais lá voltei, Ana. Não consigo.” “- Nem eu, Dr. António.” E, mutuamente, lemos tristeza neste não regresso. Amarga, a sensação de ingratidão de pequenos mundos. Avançamos.

“E do Porto, Dr. António, continua a gostar?” “- Das pessoas, muito. Mas não consigo estar mais tempo na rua, como gostaria. Muitos protocolos aqui. Queria andar mais lá fora. Tu percebes.” E contou-nos histórias onde se lia a hospitalidade da gente que o acolheu.

De vez em quando, falava de um texto que escrevi em tempos (quando o tempo me permitia a escrita regular e a amabilidade do meu querido Voz de Lamego a publicava semanalmente). Não recordo o que escrevi e as contingências informáticas de há mais de uma década levaram consigo o trabalho de uns anos. Uma coluna em que falava sobre o Dr. António. Mesmo sem me lembrar, tenho a certeza de que falei sobre a sua amizade, a amabilidade, a serenidade. Referi certamente o sorriso. Fi-lo em boa hora. O que hoje escrevo, (que mais não é do que deixar para memória futura o nosso último encontro, onde, entre outras coisas, lembramos outros tantos encontros) o Dr. António não lerá.

Guardarei de si, meu querido amigo e tantas vezes confidente, a ternura com que me tratou e tratou os meus. As lições. A disponibilidade. O incentivo. O carinho pela sua mãe (e as viagens que fez para acompanhá-la). A pedagogia. O saber ser e saber estar, independente de quem está diante de nós. A escuta. O abraço terno. A disponibilidade. O sorriso. O sorriso. Sempre o sorriso.

Fico feliz por ter pegado a Maria ao colo. Sei que a guardou bem no coração e falar-lhe-ei de si. Ficam duas coisas por cumprir (e tantas outras que a vida ainda nos traria): agora, sei que não mais virá a Lisboa e não passará aqui em casa para pormos um pouco de conversa de dia. A segunda, cumpri-la-ei um destes dias. E, não estando, tê-lo-ei também comigo.

Junte-se, agora, à minha Mãe, à Tia Ana Maria, ao Cónego Ilídio e ao Pd. Acácio e façam um bela tertúlia. Levem convosco o Padrinho e o meu primo João, que eles animam a conversa. Pelo meio, vá sorrindo a todos os meus que estão por aí. Tenho a certeza de que o receberam com um grande abraço.

Ontem, recebi uma mensagem escrita, demasiado curta e cruelmente dura. As minhas pernas tremeram e não consegui não chorar. Deixo hoje a minha catarse. Para memória futura. Até já, Dr. António.


(e que me perdoem, pela minha incredulidade, os discursos do sabemos que continuará a olhar por nós e da estrela a brilhar. Entendo. Juro que sim. Mas começo a ter demasiados números na lista telefónica que não responderão às minhas chamadas.)

★★★

Comentários

  1. Revejo-me totalmente neste texto. Muito obrigada pelo testemunho. Também fiquei sem chão!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares