R. 14 anos. Sem-Abrigo.

"São tantos olhares
De espanto, vazios
E é tanto o escuro e faz tanto frio
Há gente caída no chão
Sem ninguém que os levasse
Sem que ninguém que os abrace
Antes da escuridão."
[Mafalda Veiga]

R. 14 anos. Chegou à boleia de um qualquer desconhecido. Dorme numa rua da cidade do Porto.

Com ele, quais escudos protectores, estão J., 24 anos, e A., 22. Partilham o mesmo cobertor, numa noite em que o termómetro revela já a chegada do Verão.

Esconde-se por debaixo do que o cobre. Não quer mostrar a cara. Talvez tenha medo. Chegou, do sul, à cidade grande há alguns dias. Deambula pela cidade, enquanto o sol não se põe. Já conhece a Ribeira e a ponte. Talvez já tenha saltado para os famosos mergulhos no Douro, tantas vezes filmados e fotografos, sem que se desevendassem as histórias por detrás de cada valente miúdo. Nesta noite, encontrou dois companheiros. De rua. Dormem agora na entrada de uma famosa loja, numa não menos famosa movimentada zona do Porto. Dormem os três, quando parámos a carro. Acordei o que estava mais próximo de mim.
Não é de longe J. Está na rua há alguns meses, mas espera um quarto para breve. Espero não encontrá-lo numa próxima noite. Será certamente bom sinal. De trato fácil, educação extrema e um sorriso fantástico. Agradece o que lhe levamos. Peço-lhe que acorde o amigo, para que tome leite com chocolate.
A., 22 anos, e um portugês revelador de uma nacionalidade de leste. Confirma. Está em Portugal há três meses. Tantos quantos dorme na rua. Apaixonou-se, conta-nos. O que quer? Trabalho, senhor. Trabalho.
O do meio insiste em não sair da posição em que se encontra. Pergunto a J. a idade do amigo. Parecia-me de pequena estatura. Tem 14. Apareceu aqui hoje, não tinha onde dormir e dissemos-lhe para ficar aqui connosco.
14?
R. 14 anos. Dorme ao frio. R. 14 anos. Não pode... A medo, e com muito custo, levanta a cabeça para que o possamos ver, conversar, tentar perceber (se é que há entendimento possível, perante isto). Fugiste de casa? Não. A minha mãe abandonou-me. (mãe? disseste mãe?) E depois? Fiquei na beira de uma estrada. Andei, andei, andei. Quando estava cansado, pedi boleia. Vim parar aqui.

R. J. A. Dormem numa rua do Porto. Partilham o mesmo cobertor.

É esta, sem dúvida, a mais reconfortante experiência da vida. Paradoxo, talvez. Dois dias depois, R. não me sai da cabeça. Fui procurá-lo no dia seguinte. Apenas encontrei A., que me disse que os amigos estavam bem.
O que, durante o dia, não passam de vultos a que viramos a cara, são, durante a noite, a imagem da solidão e do abandono. Têm um nome e um rosto e uma idade e um local. Um local onde dormem. Noite após noite. Faça chuva, calor, vento, trovoada. E já tiveram uma vida e família e comida e casa.
Relativizar a minha vida. Nada mais perante isto.

Ao F., com quem partilho estas noites de domingo e que me revela a melhor dimensão que um ser-humano pode ter...Tudo em ti será muito pouco para te qualificar como mereces. Um dia, quando for grande, gostava de ser um pouquinho como tu... Grazie tanti, amigo! Por mim e por cada um deles.

Hoje. Noite de dúvidas, indecisões.
Eu trago-te comigo e sinto tanto, tanto a tua falta...

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