da triste soma do que somos


 

[Queridas filhas, 

que este texto, um dia, vos soe estranho, desconexo. Será a melhor forma de eu saber que me enganei.]




Ora vamos lá falar de covid, aplicações, umbigos e afins.

No final, sintam-se à vontade para abandonar esta humilde sala onde vos escrevo. É a minha opinião, vale o que vale e, sem modéstia, acho que pode valer alguma coisa!

Ato de contrição primeiro: fui das que, no início, achou que o vírus  nunca ia chegar cá. Ai, porque a China é longe. Ai, porque os italianos são desorganizados. Ai, que os espanhóis estavam distraídos. Ai, que – pronto! – há covid em Portugal. Desvalorizei, sim, que talvez fossemos tão pequenitos que nem o vírus nos quisesse. Mas quis.

Graças ao vírus, a minha filha ia nascendo sem que o pai lá estivesse. Graças ao vírus, os avós e os tios conheceram a Francisquinha muito tempo depois de ela ter nascido e tanta família não a conhece ainda. Graças ao vírus, a Mimi ficou quase seis meses sem ver os amigos, a Fátima e a Mónica que lhe enchem o coração. Graças ao vírus, a Mimi explodiu, deu fortes murros na parede do quarto, enquanto berrava, em desespero, quando é que isto acaba?. Graças ao vírus, a Mimi não brincou na rua, deixou de ir ao parque, passou horas em frente à televisão e aprendeu que não deve partilhar (havemos de reverter isto, miúda, que nem serias filha destes pais....). Graças ao vírus, os meus colegas deixaram a família para trás, colocando os alunos, fechados em casa, na frente das suas prioridades.

Graças à porcaria do vírus, há mais desempregados, mais pobres, mais doentes, mais pessoas isoladas. Graças à porcaria do vírus, confirma-se que o egoísmo é o nome do meio de metade do mundo e que a outra metade depende da simpatia e generosidade alheias, que não chegarão nunca.

Costuma dizer-se, noutros contextos, que não mudaremos o mundo, mas seremos felizes se mudarmos a vida de uma, duas pessoas. Estamos de acordo. Então, e agora, não instalamos uma aplicação porque, desculpa número um, há poucos registos de infetados e, por isso, não vale a pena? Canta-lhes, Palma, que me deixem rir! Não, senhores. Proteja-se uma vida e já valeu a pena. Simples.

Percebo agora, eu, idosa das tecnologias, que não estou só nesta exclusão. Reformulo: percebo agora, eu, idosa das tecnologias, que a maioria do meu país vive na app-exclusão. Desculpa número dois, a privacidade e o camandro que a rodeia. Vivam os facebooks e instagrams desta vida (de que sou, registe-se, habitual  e assídua utilizadora)! Mas por que raio está a minha privacidade – que não está em causa (repitamos todos: não está em causa) – acima da saúde pública? Repitamos de novo: a minha privacidade não está em causa. Mas, mesmo que estivesse... O egoísmo, meus caros, o egoísmo! Não espero, claro, que a minha Madrinha, nos seus 87 anos, instale o que quer que seja. Esperava, no mínimo, que isto não fosse assunto sequer e que quisessemos, para os outros, o mesmo que queremos para nós.

Há aqui revolta, sim. Porque eu, egoísta que também sou, passo os dias a falar atrás de uma máscara e a dor de garganta é a menor das minhas preocupações. Porque eu, egoísta que também sou, sinto que me faltam os abraços. Porque eu, egoísta que também sou, proíbo, em muito, a minha filha de ser criança, quando devia dar-lhe, em tudo, a infância numa bandeja.

Há aqui revolta, sim, pela estupidez alheia que me envergonha e me faz descrente. Assusta-me a hipótese de ter alguém sozinho, em final de vida, numa cama de hospital. Mas deve ser problema meu. Assusta-me a hipótese de, depois de um final de vida, não poder despedir-me de alguém que me quis bem. Mas deve também ser problema meu. Assusta-me a hipótese, que já vimos ser real, de não haver despedidas, de uma morte ser mais um número, algures numa fileira de caixões. É um problema meu, certamente.

Continuarei amanhã, desde que acordar, a proteger-me, a proteger os meus e os tantos que me são confiados. Não sinto, em momento algum, o coração apertadinho. Sei que este tonto que por aí passeia há de bater-nos à porta, claro, que não moram aqui inatingíveis. Mas, quando o batente soar, que eu consiga esquecer que, por detrás do som, está a incúria, a ignorância e os mundos que giram à volta de outros tantos umbigos.

Não sairemos disto melhores pessoas. Sairemos mais desumanos, menos atentos, mais egoístas, menos Pessoas. E é triste. É muito triste.


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