Feliz dia da (minha) Mãe



Diz-se que tudo muda depois de nascer um filho. Não tenho ainda tempo suficiente para dizer se se tratará de uma verdade assim tão absoluta. Muda muita coisa, sim, mas há tantas outras que ficam iguais ou que se alteram da mesma forma que aconteceria se não houvesse descendência.

A minha vida mudou já algumas vezes. E, com essas mudanças, altera-se também a visão que tenho sobre os dias que passam e que, por vezes, doem.

Hoje é dia da Mãe. Não sinto que seja o meu dia. É, isso sim e eternamente, o dia da minha Mãe.

Não sofro já, como sofria. Anteontem, junto a mim, falava-se sobre o que iam fazer no dia de hoje, o que oferecer, sobre as mães. Não tive vontade de sair dali, nem de pedir que mudassem de assunto. Nada. Zero. Talvez a tranquilidade tenha vindo com a Maria. Ou não.

Nunca escrevi sobre a minha Mãe. Falei (e falo) muito. E aprendi que falar é mesmo o melhor caminho. Chegou o dia.

Não digo que tive a melhor mãe do mundo. Sinto-o mas há afirmações que, de subjetivas, se guardam para nós. Tive, sem dúvida, a mais presente, a mais preocupada, a mais lutadora, a mais trabalhadora, a mais empenhada, a mais dedicada (a nós, aos amigos, aos alunos e, tantas vezes, tão pouco a si mesma).

Em casa, nunca fomos dois filhos. Fomos quatro, mais os primos e os amigos e os vizinhos e quem viesse. E, hoje, somos o resultado dessa “ciganidade” boa e instalada. Tenho cem tios e mil primos, sem graus nem proximidades, porque sempre éramos todos iguais. E a minha Mãe ajudava no português e no francês e nas crises da adolescência e existenciais e vocacionais e as férias eram grandes em dias e em pessoas. Acho que lhe herdei essa paixão pelas pessoas e por gostar das pessoas que são nossas.

Em casa, eu acordava noite dentro e via a luz na sala e a minha Mãe preparava aulas, corrigia testes, fazia materiais e estudava, porque, na luz do sol, não cabiam a vida da família e da escola. Era com a lua que organizava o dia seguinte. Acho que lhe herdei o ritmo.

Em casa, sabíamos o nome dos seus alunos, o que lhes doía na alma. E aprendemos que ensinar matérias é redutor para aquilo que um professor faz. Ou que ela fazia. Acho que lhe herdei o gosto e a forma.

Em casa, aprendi que quem quer ensinar e ajudar a crescer, está sempre lá (na saúde e na doença, como se de um casamento se tratasse). E assim foi até ao fim. Quimioterapia à quinta (pedido expresso), para descansar sexta, sábado e domingo, trabalhar na segunda seguinte e faltar o mínimo indispensável. Não há herança maior do que o exemplo.

Em casa, batiam à porta alunas da sua escola do coração, que ajudou a crescer (e onde família tinha também um significado especial). Ali, partilhávamos os jantares de Natal, as festas de final de ano, as missas em dia importante. Acho que lhe herdei o orgulho por aquele cantinho onde uma outra Ana Maria (a tia) criou laços e construiu identidade.

Em casa, os livros e os discos estavam sempre à mão e havia coleções para todos os gostos. Acho que também lhe herdei a paixão pela soma das letras no papel branco.

Em casa, aprendemos e, sobretudo, sentimos que somos todos iguais e que não há melhores nem piores. Mas aprendemos também que a diferença faz parte da condição humana e que é para ser respeitada. Que a comida se come toda e que as regras se cumprem. Que a liberdade existe e que a intervenção deve ser parte de nós.

Em casa, aprendemos a gostar de conversar, de partilhar a vida, no café, com os amigos, em encontros que se estendiam pelas horas e atropelavam o almoço. Guardo, no coração, os seus amigos do coração. Acho que lhe herdei o gosto pelos cafés, pelas conversas de fim-de-semana, pelo prazer de um tempo sem mais que não as pessoas com que se partilha a mesa.

Em casa, aprendemos que não há sentido na vida sem entrega aos outros, mesmo a quem mal conhecemos. E que é na simplicidade que essa entrega se pode fazer. Sem que ninguém saiba, discretamente, como se não tivesse acontecido.

Em casa, aprendemos que tudo, até o que somos, se constrói com trabalho e sacrifício. É, no momento da conquista, que damos o valor ao que perdemos para alcançar o que ganhamos.

Em casa, a minha Mãe era Mãe e reservou-se esse papel até ao fim. Mesmo quando parecia já não haver força. Sobretudo quando não havia força mesmo.

Em casa, aprendemos (e sentimos e vivemos e sofremos e crescemos) que se luta até ao fim e que, nessa luta, o sorriso pode ser o melhor remédio. Percebemos que o fim se sente, que se sabe que vai acontecer e que temos de estar lá, viver mais um dia, com a terrível certeza de que é menos um. Em casa, aprendemos que viver é Viver e que há doenças estúpidas que batem à nossa porta e nos levam, de forma universalmente dolorosa, o corpo e os dias que passam.

Em casa, vimos que tudo doía (e, em nós, a alma) mas nunca houve um lamento, uma queixa, um sinal de que ali morava o bicho papão que a levou. Nunca. Em segundo algum.

Em casa, sem a minha Mãe, soubemos que nunca nada iria ser da mesma forma. E não foi. Não será.

Sonho connosco muitas noites e acordo na dúvida. Tenho de abrir os olhos e confirmar que a minha Mãe já morreu e que foi mais um sonho.

A minha Maria é-o (muito) pela minha Mãe. Coincidiram as vontades aqui em casa e assim foi. Não sei se nos vê (dez anos depois há ainda muito por ultrapassar) mas sei que nos acompanha. Sei que teria orgulho no nariz empinado da Mimi, na sua reação rápida e na ligeireza com que encara os desafios e os obstáculos. Há barreira? Vamos contornar.

Sei que teria orgulho de que lhe tivesse seguido os passos e de que goste (quase) tanto de ensinar como ela. Com a certeza de que nunca o farei de forma tão conseguida.

Sei que teria orgulho de confirmar que é com o passar dos anos que mais se percebem os valores e as convicções que nos passou, de forma tranquila, capaz e objetiva. Sem berros ou castigos severos. Foi, efetivamente, pelo exemplo que crescemos e somos.

Sei que não conseguirei ser um quarto da Mãe que ela foi, porque eu própria não consigo ser um quarto do bom que nela habitava. Esforço-me e esforçar-me-ei. E foi para dar sempre o meu melhor que ela me preparou. Só assim se descansa no final do dia. Eternamente.

Hoje é Dia da Mãe. Não desta mãe mas da minha Mãe. A que me ensinou tanto de tudo o que sei e do que sou. E me deu esta vida, tantas pessoas e lugares e cheiros e memórias boas e más. É essa Mãe que hoje celebro. Onde esteja, na companhia de quem também me faz falta, é dela este dia. Tal como o são todos os dias da vida que me ensinou a agradecer e a celebrar. Em família, entre amigos, nos dias bons e nos que a doença leva.

Feliz dia da Mãe. Da minha e de todas as outras Mães (que, sem dúvida, são mesmo as melhores Mães do mundo).
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